quinta-feira, 6 de agosto de 2009

A Boa Acção

Parecia ter sido ontem que tudo acontecera. A má disposição repentina que a obrigara a levantar-se da mesa onde almoçava, a correria atrapalhada até à casa de banho a que não chegara, o cambalear incerto e lento apoiado nas paredes que lhe pareciam tão distantes, os sons que se iam finando devagar, tão devagar como a sua visão se turvava e a sua boca secava... Ainda se lembrava do som que fizera ao cair no chão frio e de onde mais não se levantara.

Depois fizera-se silêncio, nenhum ruído perturbava a negridão que a envolvera. Nada via a não ser escuro, tudo desaparecera e pairava no vazio. Sentia, ainda assim, um medo horrível de cair, apesar de não saber se estava em algum lugar realmente ou se estava em nenhures – se esse local existisse, decerto seria ali! As emoções que começaram a agitar-se dentro de si, naquele frenesim que atacava antes do pânico, lançaram-na num turbilhão de dúvidas e conjecturas... E fora então que percebera, pela primeira vez, que estava diferente, e que sentira a falta de uma coisa que todos os dias tivera e nunca dera o devido valor, que desde o primeiro dia da sua vida a acompanhara incondicionalmente, uma coisa que era tão presente que nunca parara para pensar nela, um órgão do seu corpo: o coração. O seu coração não batia acelerado como seria suposto numa situação daquelas, de alta ansiedade... Na verdade, nem o seu cérebro estava tolhido de racionalidade conforme era habitual em casos de stress; nem o seu corpo transpirava do medo que tinha; nem a adrenalina bombeava pelas veias para lhe dar a energia necessária para agir; a bem dizer, nem o sangue corria...

E isso era possível! A sua mente estava arguta como nunca e sabia bem o que sucedera. Não havia sangue nas suas veias, nem adrenalina, porque já nada poderia ser feito. Estava morta! E ali onde estava não tinha corpo... Por isso, pensara, também não seria importante saber se estava parada, ou não; se pairava no ar, ou se estava assente nalgum lado. Na realidade, ser-lhe-ia indiferente, julgava, estar a viajar à velocidade da luz, facto que não poderia comprovar dada a ausência de referenciais de movimento, ou quieta. Era tudo preto, negro, trevas... Imaginava que apenas teria de esperar.

De repente sentiu-se esmagada!

Juraria ter ido ao encontro de uma parede, ou batido no fundo de um poço. Fora como se todo o seu corpo, que não existia, se tivesse espalmado contra um objecto que inesperadamente surgira no caminho. Não sentira dor nenhuma, somente um pequeno desconforto, seguido de uma sensação clara de transmutação... Estendeu aquilo que entendia por serem os seus braços na direcção do obstáculo e fora sugada em direcção à luz.

Levara algum tempo a habituar-se àquela nova realidade, àquela sensação de liberdade, ao facto de não ter limitações físicas que a impedissem de fazer o que quisesse. E nos primeiros tempos andara deslumbrada com o novo mundo, com aquilo que descobria que sempre soubera, mas, como por artes mágicas, nunca se lembrara durante a sua vida. E isso era de lamentar, porque concluía que tinha conhecimentos a que jamais teria acesso quando vivia: factos sobre os mundos, sobre as estrelas e sobre os seres...

Todavia, conforme lhe haviam explicado, segundo eles pela 14ª vez, não era suposto viver-se com todo o conhecimento que se tinha na realidade, porque a vida era um conjunto de desafios, uma jornada, que teria de ser feita à custa da aprendizagem constante, um aprendizagem que, por vezes, significava ter de aprender de novo algo que sempre se soubera. Tudo em nome da humildade, da caridade, da honestidade, da fé...

Aquilo pouco lhe importava. Não percebia porque razão sempre que voltasse à vida teria de aprender que 2+2=4; e muito menos o que é que isso tinha a ver com aqueles valores enunciados. Para já, porque entendia que tinha de ir passo a passo, bastava-lhe perceber que depois da vida na Terra tinham aquele período de recobro até que mais tarde voltassem a reencarnar. Preocupar-se-ia com essas questões quando chegasse essa altura! Agora queria era voar, espalhar-se pelos céus azuis, dominar a sua forma etérea, muito mais bela do que as mais belas das mulheres de que se lembrava da sua vida. Uma vida que não fora difícil. E até considerava ter gozado bem a vida até ao dia em que morrera - uma morte estúpida, por sinal!

Como teriam ficado os seus familiares? E os seus amigos?

Fora tão repentina a sua chegada ali que nem parara para pensar naquilo que deixara. E agora que pensava nisso, constatava que aquela sua vida estava a tornar-se numa memória distante, numa lembrança, como todas as outras vidas que tivera, num momento que poderia ser comparado a um dia da vida humana. Não deveria apoquentar-se com aquilo! Tinha apenas que deixar vir ao de cima o ser que era, com a sapiência que tinha... E isso levaria tempo, coisa que, segundo eles, já haviam explicado, também, por 14 vezes!

- Criança! – a voz bradava-lhe de todos os lados – Precisamos de conversar!
- Quem és? Onde estás?
- Eu sou quem sou. E estou em todo o lado, por aqui!
- Estou a falar com Deus?

A voz silenciou-se por breves instantes...

- Acreditas em Deus, Criança?
- Estaria aqui, se não acreditasse?!
- Poderias estar, ou não.
- Que me queres?
- Onde pensas que estás, Criança?
- No Céu...

A voz voltou a calar-se.

- Estás em Belazir!. – anunciou passado algum tempo – Não é o Céu!
- Então é o quê? O Inferno?

A voz riu.

- Não. Também não é o Inferno!
- É o quê?
- É uma passagem...
- Quer dizer que ainda tenho uma viagem para fazer?
- Não! A tua viagem, por enquanto, finda aqui, Criança!
- Não vou para o Céu?
- Não!

Ela deixou a sua forma etérea descer até ao chão firme de Belazi, como se o peso daquela resposta tivesse sido demasiado para que se mantivesse a flutuar. Estava longe da povoação. Alargara-se no seu voo e fora até aos campos de flores e densos arbustos perfumados. Ao longe ainda avistava as duas grandes torres de Belazir e os contornos de todas as casas, e se buscasse no horizonte, do lado oposto, veria as serras recortadas no céu. Era tudo tão lindo que, depois de ter percebido que morrera, sempre pensara estar no céu. Mas não estava e isso, não percebia porquê, deixava-a triste. Muito triste. O que é que fizera de errado?

- Criança! – voltou a bradar a voz - Não é agora que deves lamentar!
- Lamentar o quê? Onde é que eu errei?
- Não se trata de errar...
- Não!? Sempre me ensinaram que quem faz mal vai para o Inferno, e só os bons vão para o céu. Quem é que vem para Belazir?
- Quem não cumpre as regras.
- Quais regras? Aquelas que não é suposto nós lembrarmo-nos?!
- Sim. É por isso que a Vida é um desafio, uma jornada de descoberta, aprendizagem e fé!
- E eu errei onde?

A voz resmungou.

- Já te disse que não erraste, Criança! Quem erra está preso naquelas Torres que vês daqui. Tu estás livre e se te portares bem terás direito a uma casinha na povoação...
- O que é que eu fiz?
- Todos nós temos um número máximo de Boas Acções e Más Acções para praticar na Vida. Quando esse número é ultrapassado: soa o gongo!
- E depois!
- Depois nós reunimo-nos para tomar uma decisão...
- Não acho justo que joguem com a vida das pessoas assim!

A voz resmungou de novo.

- A Vida é uma passagem. Isto é que é a Verdade! – pareceu-lhe sorrir – Além disso nós avisamos...

Lembrou-se de repente. Naquela manhã, no dia em que morrera, quando saíra de casa, tivera a sensação de que nunca mais iria voltar. Sentira um vazio tão grande dentro dela, uma saudade repentina, que até telefonara aos pais, apenas para dizer que gostava muito deles...

- Pois é, Criança! – exclamou a voz ao ler-lhe os pensamentos – Tu sempre soubeste o que te iria acontecer. A tua Fé estava lá, apenas te faltou a humildade e a honestidade para o admitires.
- Quer dizer, então, que falhei, Senhor?
- Não. Não falhaste... Quebraste uma regra. E não me chames Senhor, porque eu sou apenas o teu carcereiro. Não sou Deus!
- Carcereiro?! Estou presa?!
- Não cumpriste a lei...
- Qual foi a má acção com que eu ultrapassei o plafond?

Perguntou com alguma ironia

- Lembras-te da tua última noite?

Fez algum esforço. Não se recordava de ter feito nada de errado. Jantara com os pais e depois fora ao cinema com uma amiga... No regresso apanhara um taxi. O homem não se calava com a dificuldade da vida, com os filhos que só lhe davam problemas, não queriam estudar e só queriam andar na vadiagem, com a mulher que era tão ciumenta que achava que não tinham dinheiro, porque ele o gastava com outras mulheres. Ficara com tanta pena do homem que quando ele a deixara à porta de casa, dera-lhe 20 € para pagar 7.50€ e oferecera-lhe o resto de gorjeta.

- Não me lembro de ter feito nada de mal... – disse por fim
- E quem te disse que foi uma Má Acção, Criança?

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